quarta-feira, 11 de março de 2015

Participar da vida pública transformando a sociedade

Participar da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42) Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e Maria. Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como uma oposição entre vida Ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida contemplativa, mas essa interpretação não tem consistência exegética. Não há nenhuma referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas. Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...” (Lc 10,41-42). Segundo, precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e de Lucas. As mulheres eram - não todas, é óbvio - propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá. Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!” Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a atitude dos discípulos dos rabis. Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Só os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se tornarem discípulos. Ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga, e se torna discípula. Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para Jerusalém. - Ser simples como as pombas e esperto como as serpentes. Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado. Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão. Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum. Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!” - Ser intransigente diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão. Algumas conclusões. Durante a leitura, meditação e estudo do Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2015, inúmeras vezes me veio à mente e ao coração a pessoa do papa Francisco, sua práxis e seu ensinamento como guia da Igreja Católica no mundo. Vejo muita sintonia entre o que nos pede Jo 5 a 8 e o que nos anima o papa Francisco. Por isso registro aqui algumas afirmações do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, principalmente fazendo referência ao cap. IV, que trata justamente da Dimensão Social da Evangelização: “Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.” (n. 176). “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” (n. 49). Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual sistema econômico, "injusto na sua raiz" (A alegria do Evangelho, n. 59). Como disse João Paulo II, a Igreja "não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (n. 183). "Saiam!" é a essência da mensagem que o papa Francisco envia a bispos, padres, membros da comunidade. Saiam para fora das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos – anunciem o Evangelho às periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados. Às questões sociais, o papa Francisco dedica dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o segundo e o quarto. Critica o "fetichismo do dinheiro" e "a ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano", versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de ouro". Francisco critica o atual sistema econômico: "esta economia que mata" porque prevalece a "lei do mais forte". Ele volta à cultura do "descartável" que criou "algo novo" e dramático: "Os excluídos não são 'explorados', mas resíduos, 'sobras'" (n. 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum". E indica na "desigualdade social" as raízes dos males sociais. A Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. "A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos". Ele dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual" em que vivemos, um "mercado divinizado", onde reinam a "especulação financeira", "corrupção ramificada", "evasão fiscal egoísta" (n. 56). Enfim, seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano existente em nós. Para concluir não concluindo, contamos com todas as pessoas cristãs para vivenciar a Opção preferencial pelos Pobres e pelos Jovens, buscar alternativas para a superação da atual crise socio-política-econômica-cultural e religiosa. Apoiar firmemente a Economia Popular Solidária, as lutas pela Reforma Agrária, por agricultura familiar, por preservação ambiental, pela mudança do atual modelo econômico neoliberal. Queremos um modelo econômico que seja popular, democrático, soberano, inclusivo e sustentável ecologicamente. Queremos construir outro modelo de igreja, onde, de fato, a igreja seja povo de Deus, em comunidades que se relacionam em sistema de rede. - Referências de práxis libertadora. Preferimos nesse artigo não citar nenhuma obra da literatura bíblica ou teológica, mas dizer que o que nos inspirou o tempo todo na construção do texto foi a experiência de luta dos Sem Terra do MST, dos Sem Casa, do povo das Comunidades Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais e dos Movimentos Sociais Populares: povo que de forma coletiva, com fé no Deus da vida, fé nos companheiros/as, fé nos pequenos e injustiçados, de mãos dadas, seguem marchando e lutando para conquistar direitos fundamentais como um pedacinho de terra, moradia digna e respeito. Enfrentam um tsunami de conflitos e de perseguições, mas não desistem. A todo esse povo dedico esse texto. Reflexão sobre o tema da CF 2015 Por Frei Gilvander O. Carm

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